A tramitação direta dos inquéritos entre a Polícia e o Ministério Público tem novo adversário. O Movimento de Defesa da Advocacia pediu ao Supremo Tribunal Federal, nesta quarta-feira (2/3), para entrar como amicus curiae na Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a norma do Conselho da Justiça Federal que autoriza o procedimento. A Resolução 63, de 2009, tira do Judiciário federal a necessidade de intermediar a circulação das investigações enquanto não há denúncia. Mas para os advogados, se os pedidos de prorrogação de prazo não passarem pelo crivo de um juiz, os investigados poderão ficar eternamente sob a mira da Polícia.
A polêmica põe de um lado os promotores, que defendem que o trânsito direto reduz o tempo de tramitação dos processos, e de outro os advogados e delegados de Polícia. Estes afirmam que o juiz, mesmo na singela função de despachar os pedidos de prorrogação de prazo como um intermediário, tem a chance de verificar se está ocorrendo algum abuso por parte das autoridades. Delegados também questionam a relação que resulta desse tipo de comportamento, que submete as iniciativas de investigação da Polícia ao MP, tirando o elemento imparcial – o juiz – da equação.
Quando foi editada, a Resolução teve a intenção de acabar com o vaivém da papelada policial nas varas federais, que consome de três a quatro meses do tempo dos processos a cada ano. Feito um primeiro cadastro, os demais pedidos de prorrogação de prazo não precisam mais passar pelos balcões dos cartórios. Apenas prisões em flagrante e operações de busca e apreensão precisam ter autorização judicial. Caso contrário, o Judiciário só entra em ação com a apresentação da denúncia. O autor da regra foi o ministro Hamilton Carvalhido, do Superior Tribunal de Justiça, então corregedor-geral da Justiça Federal. “O juiz acaba não tendo papel jurisdicional, mas persecutório”, explica, ao relembrar o caso. “Quem tem obrigação constitucional de exercer o controle da Polícia é o Ministério Público.”
Em 2009, a Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal entrou com a ADI para derrubar a norma. Foi acompanhada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que impetrou Pedido de Providências no Conselho Nacional de Justiça com o mesmo objetivo. “Recentemente, os jornais noticiaram que o MPF de São Paulo, sem qualquer controle judicial, ficou investigando delegados de Polícia Federal por mais de cinco anos. Imagine o que será daqui para frente se a moda pegar”, escreveram na ação o então presidente do Conselho Federal da OAB, Cezar Britto, e o secretário-geral adjunto da entidade, Alberto Zacharias Toron. O alerta se baseou em notícia publicada pela ConJur, que denunciou investigação secreta de cinco anos mantida pelo MPF.
A Ordem também pediu sua admissão na ADI como amicus curiae. Os advogados protestam contra a falta de estrutura do MP e da Polícia para atender à demanda para conceder vistas de inquéritos em andamento, como prevê a Súmula Vinculante 14 do STF. O Movimento de Defesa da Advocacia, por sua vez, reforça que a falta de um juiz acompanhando as investigações impede que o sigilo nos inquéritos seja quebrado a pedido da defesa, nos casos de inquéritos em segredo. O requerimento do MDA é assinado pelos advogados Marcelo Knoepfelmacher, Roberto Podval, Paulo Thomas Korte, Rodrigo Monteiro de Castro, Fábio Delmanto e Paula Gambôa.
A alegação de inconstitucionalidade feita pela entidade remete à competência da União para legislar sobre Direito Processual, o que não poderia ser feito nem por meio de uma norma infralegal, nem pelo Judiciário. Isso porque, de acordo com o pedido, o artigo 10, parágrafo 3ºdo CPP, havendo necessidade de mais investigações contra suspeito solto, a autoridade policial deve “requerer ao juiz a devolução dos autos para ulteriores diligências”. Texto semelhante tem a Lei 5.010, de 1966, que trata das investigações federais. O Código prevê que os inquéritos estaduais devem ser concluídos em dez dias no caso de suspeitos presos, e 30 para os livres. Na Justiça Federal, o prazo é de 15 dias. Para o MDA, a leitura do dispositivo exclui a possibilidade de trâmite direto, fato que só seria modificável por uma lei.
No entanto, para o idealizador da Resolução, ministro Hamilton Carvalhido, a participação do juiz na fase de inquérito é prejudicial e não benéfica ao suspeito. “Devido ao seu envolvimento na investigação, o juiz acaba sendo influenciado pelo inquérito e, mesmo inconscientemente, começa a formar convicção”, diz. Em sua opinião, ao juiz cabe decidir apenas sobre medidas cautelares pedidas pelo MP, ou sobre violações de garantias denunciadas pelos investigados. “Por isso, a introdução do juiz de garantias no novo Código é tão importante.” Quanto aos pedidos de vista, Carvalhido também é categórico. “O MP precisa se estruturar para atender os advogados e conceder acesso aos autos. O que deve acontecer é o MP se abrir, e não o contrário.”
Membros do Judiciário divergem sobre a questão. No ano passado, o Tribunal de Justiça de São Paulo se bateu em relação à esfera estadual. O Conselho Superior da Magistratura propôs a mudança, que acabaria com o Departamento de Inquéritos Policiais e Corregedoria da Polícia Judiciária (Dipo), responsável justamente por acompanhar a tramitação de inquéritos antes da apresentação das denúncias pelo MP – figura semelhante à do juiz de garantias discutida no novo Código de Processo Penal. Por seis votos a um, os desembargadores da cúpula da corte rechaçaram a ideia, com o argumento de que embora as investigações policiais não tenham de se submeter ao contraditório, o fato de lidarem com a liberdade das pessoas já é motivo suficiente para que não saiam das vistas do Judiciário.
O CNJ já aprovou norma parecida. A Corregedoria-Geral de Justiça do Paraná editou, em 2007, o Provimento 119, que estabeleceu a tramitação direta do inquérito. O caso foi julgado favorável à manutenção da regra no mesmo ano, no Procedimento de Controle Administrativo 599. Em dezembro, o TJ do Rio Grande do Norte seguiu o exemplo e editou a Resolução 66/2010, que entrou em vigor nesta terça (1¬∫/3).
Em entrevista concedida à ConJur em dezembro, o presidente do Supremo, ministro Cezar Peluso, defendeu a mudança pela via legislativa. “Sou favorável a uma simplificação desses trâmites. Perde-se muito tempo hoje. Na medida que isso possa ser processado eletronicamente, o Judiciário não perderia nada caso a tramitação fosse direta, porque continuaria acompanhando tudo. Não há o mínimo perigo de o Judiciário perder o controle daquilo que é de sua competência”, afirmou.
ADI 4.305