Considerações sobre a “Sucumbência Recursal”:
Inibir Aventuras Jurídicas não pode Representar
Inibição ao Direito de Ação ou ao Duplo Grau de Jurisdição
Fomos informados pela imprensa especializada que teria sido apresentada proposta, perante a Comissão do Senado incumbida de elaborar o anteprojeto do Código de Processo Civil, subscrita pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), visando seja criada a figura da “sucumbência recursal”.
De acordo com o noticiário, tal proposta consistiria em se adotar mecanismo por meio do qual as partes seriam “inibidas de praticar aventuras judiciais”, ampliando-se o leque de multas e majorando-se/dobrando-se a sucumbência, além daquela fixada na sentença, na hipótese da interposição de recurso em que se saiba, de antemão, que a parte não logrará êxito, salvo se a matéria for controvertida perante os Tribunais.
Não obstante merecer aplausos no que diz respeito ao seu objetivo primordial de desafogar a Justiça brasileira, a proposta da AMB, tal como pudemos tomar conhecimento pelo noticiário especializado, merece ser analisada com cautela e muita atenção pela comunidade jurídica, a fim de que direitos e garantias fundamentais não sejam amesquinhados pela rapidez exigida pelos tempos atuais.
Isto porque a rapidez na entrega da prestação jurisdicional (que a todos interessa: partes, Advogados, Juízes, Ministério Público) não pode nem deve amesquinhar o direito constitucional de ação ou defesa, com todos os meios a ela inerentes, inclusive a interposição dos recursos previstos em Lei.
É evidente que essa afirmação pressupõe a boa-fé processual e a não interposição de recursos meramente protelatórios, situações essas que já são coibidas pelo Código de Processo Civil atual (caso do parágrafo 2¬∞ do artigo 557 do CPC, que estabelece multa entre um e dez por cento do valor corrigido da causa, na hipótese de agravo de instrumento manifestamente inadmissível ou infundado).
No entanto, quando se trata de interposição de Recurso de Apelação, cuja sucumbência já foi fixada pela sentença de primeira instância, e que, em muitas hipóteses é recebido meramente no seu efeito devolutivo (ou seja, sem nenhum efeito prático no tocante à protelação, inclusive nos casos de sentença em embargos à execução), não faz sentido a aplicação de mais uma punição/sucumbência à parte.
Devemos ter presente que, na sistemática atual, diversas situações do Código de Processo Civil (excetuadas aquelas de jurisprudência do plenário do STF ou Súmula do Tribunal Superior competente) exigem o duplo grau de jurisdição obrigatório (artigo 475 do Código), a saber: (i) sentença proferida contra a União, Estado, Distrito Federal, Município e respectivas autarquias e fundações de direito público; e (ii) sentença que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública.
Não obstante as hipóteses de duplo grau de jurisdição obrigatório, a garantia à revisão das decisões judiciais por instância hierarquicamente superior é direito fundamental que, mesmo contraposto à celeridade a que devem ser conduzidos os processos judiciais (inciso LXXVIII do artigo 5¬∞ da Constituição, introduzido pela Emenda 45/2004), com esta deve se harmonizar.
E não olvidemos que o direito ao duplo grau de jurisdição encontra previsão no artigo 8¬∞, alínea “h”, do Pacto de São José da Costa Rica, incorporado ao nosso ordenamento jurídico pelo Decreto n¬∞ 678/1992, por meio do qual é assegurado, dentre as diversas garantias judiciais consagradas no texto, o “direito de recorrer da sentença para Juiz ou Tribunal Superior”, não se limitando, segundo pensamos, essa garantia ao processo penal, aplicando-se a todos e quaisquer processos judiciais (princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, artigo 5¬∞, inciso XXXV da Constituição; e princípio do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, artigo 5¬∞, incisos LIV e LV da Constituição).
Assim, o que se propõe não é o ilimitado exercício do direito de recorrer (que causa lentidão e só contribui para o indevido congestionamento de processos nas instâncias do Poder Judiciário brasileiro), mas apenas o legítimo exercício do direito/dever de recorrer.
Por tais razões é que os conceitos de “aventura jurídica” e de “recurso que se saiba não lograr êxito” a que alude a proposta supra mencionada devem ser analisados com muita cautela e discernimento, sendo conveniente relembrar que o direito não é estático, mas sim dinâmico, de modo que a “jurisprudência consagrada” de hoje poderá ser revista amanhã, não nos parecendo justa nem isonômica a punição indiscriminada aos litigantes que meramente exercerem seu direito ao duplo grau de jurisdição.
Se RUI BARBOSA estava certo ao afirmar que “Justiça tardia não é Justiça; senão Injustiça qualificada” é igualmente certo dizer que Justiça rápida demais é irresponsabilidade.
Marcelo Knopfelmacher
Advogado Tributarista e
Presidente do Movimento de Defesa da Advocacia – MDA