Estamos acostumamos a pagar muitos tributos e a não ter contraprestação de serviços públicos. Nenhuma novidade. O que a população e nossas lideranças ainda não perceberam é que a solução contra o problema da falta de segurança no Estado de São Paulo, e porque não no Brasil, está dentro da própria Administração Pública, mais precisamente dentro dos órgãos de arrecadação.
A tributação moderna vive no estado da arte (nível mais alto de desenvolvimento). Os conceitos jurídicos há décadas estão consolidados. E as modificações recentes seguem acompanhadas de inúmeros controles e softwares que tornam a arrecadação automática.
As trevas e a calamidade que recaem sobre os sistemas de segurança pública constituem um paradoxo inaceitável. De um lado, a Receita Federal e as Secretarias de Fazenda Estaduais e Municipais adotam controles instantâneos. De outro, a segurança pública alicerça-se no pega-pega, com poucos recursos e baixos salários, ao contrário da arrecadação e da fiscalização, com bons recursos e bons salários. Parece que a modernidade vale para arrecadar, mas não para proteger. Proteção virou luxo.
A Receita Federal do Brasil possui computadores capazes de simular explosões nucleares e de cruzar milhares de dados dos contribuintes. São tantas as possibilidades que diversos dados acabam não sendo aproveitados. A capital paulista está a cada dia que passa melhorando seus serviços de arrecadação eletrônica. O ápice estará no sistema que multará o excesso de velocidade não mais por radares fixos, mas pelo cálculo da média horária entre os pontos de controle.
Enquanto isso, essa mesma tecnologia não é utilizada para monitorar os clientes do sistema carcerário. Vejam, para pedir taxi e nos guiar pelas ruas, existem aplicativos. Entretanto, para monitorar o agrupamento e movimentação de malfeitores dispostos a matar ou mesmo incendiar seres humanos (inclusive crianças, caso da pequena Ana Clara no Maranhão), não existe nenhuma iniciativa ou solução estatal. Os bancos conseguem monitorar em tempo real a movimentação financeira de seus clientes; as Secretarias de Segurança Pública, por sua vez, não conseguem nem mesmo manter isolados aqueles que já foram presos e, sabidamente, são responsáveis pelo crime organizado.
A comparação fica mais ilustrativa se pensarmos que as Notas Fiscais Eletrônicas registram saídas, passagens por pedágios e entregas de mercadorias em tempo real, e que o mesmo não existe para o monitoramento de bandidos. Empresário que não paga imposto recebe a pecha de sonegador e responde a processo penal. Já o bandido profissional atua com regularidade, √†s vezes visitando a mesma vítima várias vezes, e nada lhe acontece. As prisões e mortes dos malfeitores surgem por acidente, e não como consequência. E aqui a culpa não é da polícia, sem recursos e salários.
Os mais abastados pagam proteção. Os menos favorecidos se viram e rezam para não precisarem nem da polícia (que não tem nem meios) e nem do Estado (não tem o que oferecer). E o remédio contra essa grave enfermidade existe e está nas mãos do estado, mais precisamente nas pastas de fazenda e finanças.
O Fisco vive no estado da arte, já a população no da calamidade. Em São Paulo, as vendas com ou sem identificação de CPF servem para fiscalizar cidadãos e comerciantes. Os marginais, por sua vez, reúnem-se, combinam, executam inocentes e ninguém consegue antecipar ou punir. Fiscalizar e arrecadar é simples. Patrulhar e proteger se tornou atividade heroica, complexa, improvável.
Que exista uma questão filosófica em função da individualidade e liberdade a contrapor estes controles eletrônicos em seres humanos, em tempos de sociedade organizada, é aceitável. Mas não é o caso. A reincidência e o desempenho dos criminosos revela ausência de limites, patrocinada pela incrível ineficiência estatal. E também não estamos em tempos de paz. A quantidade de veículos blindados ratifica a afirmação.
Em casa eu aprendi que o exemplo vem de cima. Depois de adulto, passei a perceber que a diferença é feita por quem fez aquele “a mais” que não precisava, ou por quem fez o que simplesmente devia. Por isso, concluo que neste “fazer” está a solução. E este “fazer” está com quem detém a arte, e não com quem está na calamidade. Toda a tecnologia instalada para a arrecadação pode ser aproveitada em favor da segurança. A questão não é falta de recursos, mas de atitude.
A provocação destas linhas não é dedicada mais à classe política, mas a quem detém o “muito” do estado da arte e pode fazer o que não precisa. Pode, sim, incitar mutação estrutural de dentro para fora. A solução da segurança pública não depende exclusivamente de vontade política, mas de iniciativa das pastas de arrecadação em trazer para o século XXI as pastas de segurança e, porque não, de educação e saúde. Como a semelhança entre essas pastas ainda é humana, a indiferença da excelência com relação à ineficiência não pode mais continuar.
Assim como a arrecadação não excepciona nenhum contribuinte, a loteria da insegurança não está programada para respeitar ninguém, e fora dos ambientes profissionais todos somos iguais, alvos em potencial. E não há exagero.
No universo acadêmico, sabe-se que o direito é contagioso. As sociedades modernas evoluem em contato com outras, a infecção é inevitável. Esta provocação envolve o mesmo fenômeno, mas dentro da estrutura. Que o estado da arte contamine a calamidade, transferindo suas iniciativas referendadas até no exterior para aqueles departamentos não tão eficazes.
Isso é mais simples que aprovar leis, discutir redução de punibilidade, e tão fácil quanto tributar com eficiência as empresas de segurança.
Nossa democracia direta em horas conta milhões de votos. Os processos judiciais caminham para plena informatização. A tecnologia atual, utilizada por todos nós, já se equipara √†s obras de ficção. Nesse contexto, até quando os protagonistas da eficiência aceitarão que seus pares na segurança continuem esquecidos em tempos passados? O problema não é falta de recursos, mas de atitude.
Walter Carlos Cardoso Henrique é advogado, professor de Direito Tributário da PUC-SP, representante da OAB-SP no Conselho Estadual de Defesa dos Contribuintes – Codecon (2014-2015), presidente da Comissão de Assuntos Tributários do Movimento de Defesa da Advocacia – MDA e foi um dos redatores da lei 12.741/12.